Uma dormência na língua, uma paralisia facial, falta de força na mão direita. Esses sintomas levaram Idércia Rodrigues de Oliveira, 45 anos, a procurar um médico. O diagnóstico não poderia ser pior: esclerose lateral amiotrófica (ELA).
Ao contrário do que a introdução possa sugerir, na vida de “Ide”, como é chamada, não há vitimização. Há sim, trabalho, planos, objetivos e há futuro. Conheci Idércia por acaso e, num insight de repórter, aproximei-me dela como quem nada quer, puxei conversa com o intuito de ganhar confiança e ganhei. O assunto doença só veio à tona dias depois do primeiro encontro.
Todas as manhãs, quando caminho pelas ruas próximas da minha residência, vejo um carro parado com o porta-malas aberto, pessoas a sua volta, todas saindo com um embrulho ou copo descartável na mão. Resolvi parar e saber o que era vendido ali e fui surpreendida com mais uma boa história de vida para contar.
Idércia é mais uma pessoa que trabalha na informalidade. Vende café da manhã na rua desde outubro de 2018. De posse do alvará de vendedora de lanches, conseguiu adquirir máquina de cartão, mas só vende no débito. Tem pão com ovo, pão com linguiça, sanduíche natural, sanduíche frio, cachorro quente, assados, dois sabores de suco, café, leite, bolos, bolinhos, orelha de gato, pão de queijo…Ela acorda às 3 horas da manhã e prepara todas as comidas que vende. De véspera, apenas as massas ficam prontas para, de manhã, ela passar no cilindro, rechear e assar.
Se engana quem pensa que o objetivo dela é ganhar dinheiro para sustentar uma família. Ela faz disso uma terapia para não ficar pensando na doença, e principalmente, para sustentar seus pequenos luxos e prazeres. “Quando fui ao médico, ele recomendou que eu participasse de um grupo de terapia de portadores de ELA, mas eu não fui, porque acredito que ficar pensando nisso é pior”, explica. Ela deixa claro que não gosta de falar “dela”(da doença) porque sabe que tem, mas isso não a impede de fazer tudo o que deseja.
Entre perfumes, licores e coragem
Exceto o tratamento medicamentoso, que segue à risca, a única recomendação que ela obedece é manter a cabeça ocupada para evitar a depressão, muito comum entre os portadores de ELA. Trabalhando, não tem tempo para ficar pensando em bobagens. Trabalhar, trabalhar, trabalhar, e viajar, e passear, e comprar perfumes e licor importado no Paraguai. Esses são os objetivos de Idércia, casada com Laudenir Pereira Rios há 17 anos. Uma vida que começou quando não teve medo de deixar a família, numa cidade do interior, e buscar oportunidades de trabalho em Joinville. Essa trajetória teve início há cerca de 24 anos. quando saiu da cidade de Mirim Doce, próximo a Taió-SC. Ela veio para trabalhar “em casa de família”, a convite de um pastor da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, à qual pertence. “Eles tinham uma banda, foram para lá fazer um show e se hospedaram, como convidados, na casa do meu pai”, conta.
Mais tarde, foi trabalhar em uma loja da qual o pastor era proprietário e lá ficou até que o comércio fechasse por conta da mudança de cidade do patrão. Ide então foi morar em outra casa por indicação dessa mesma família de pastores que a abrigou. “Eu fiquei lá para zelar pelo imóvel, eles não me cobravam aluguel, eu apenas pagava a água e a luz”, conta.
Para se sustentar, começou a trabalhar em lojas e depois como vendedora autônoma de lingeries. Ela reconhece que a venda de lingeries e acessórios dava-lhe um rendimento maior do que a venda de lanches, mas, segundo ela, “dava mais trabalho para fazer a cobrança, diferente da comida, que é paga no ato da compra”.
Na juventude, costumava ir a bailes em companhia do irmão. “Na primeira vez que fui sozinha a um baile, eu conheci e comecei a namorar com o homem com quem sou casada”, relata. Como nunca quiseram morar de aluguel – ensinamento recebido da sua família – decidiram construir uma casa, num lote que o marido estava comprando, no mesmo terreno do pai dele. Terminada a obra, quando ele foi pagar o terreno para o pai, a sogra de Ide disse que não queria o dinheiro, mas sim uma casa igual a que eles haviam construído. “Como não tínhamos esse montante para pagar, propomos dar aquela casa recém-construída e ir morar na dos pais dele, que era de madeira”.
Nesse período, Ide e o marido decidiram que um dos dois tinha que estudar e fazer um curso superior. Laudenir formou-se em Administração e Logística. Para que isso fosse possível, tiveram que vender o carro. “Depois disso, já construímos uma nova casa, onde moro atualmente, e é muito melhor do que a primeira, mais do que eu sonhei. Deus me deu mais do que eu pedi”, resume. Com banheira de hidromassagem, estilo arquitetônico americano e toda desenhada pelo marido, a moradia é do jeito que planejaram. “Hoje eu nem gosto muito de sair de casa”, diz.
Encontro marcado com clientes fiéis.
A rotina diária é praticamente toda cronometrada, mas ela parece não se cansar. Chega ao ponto de venda às 5h30 da manhã, assim consegue estacionar o carro sempre no mesmo lugar, onde permanece até 8h30. Quando se atrasa, conta com a ajuda dos vigilantes das empresas próximas que, por conta própria, colocam cones na vaga que ela sempre usa. Saindo dali, com praticamente tudo vendido, ela vai para uma clínica, onde as pessoas já estão aguardando o lanche. Nesse caso, a venda é feita antecipadamente pelo WhatsApp. É só chegar e entregar.
Ao final dessa etapa, ela vai ao supermercado e, no caminho de volta para a casa, já próximo às 10 horas, para no terceiro ponto de vendas, no PA Sul do Itaum. Lá, a clientela é formada por enfermeiros e médicos. As vezes ela recebe pedidos especiais de panquecas ou lasanha para o almoço. Quando isso acontece, vai até em casa, prepara esses alimentos e volta para entregar as marmitas quentinhas. “Demora de 30 a 40 minutos, porque é só montar e assar. Sempre tenho os molhos prontos em casa”, afirma.
Quando dá tempo, “Ide” descansa um pouco, mas, no máximo, até às 13h30, porque de tarde tem nova entrega de lanches ali mesmo no PA Sul. “É uma clientela feita com base na propaganda boca a boca”, afirma ela, mostrando-se agradecida ao médico Marcos Vinicius Polonio, seu primeiro cliente. “Sempre achei que a vida de médico era fácil, mas não é não, vejo agora que é bem complicada. Eles não têm horário de almoço nem de lanche, o PA está sempre cheio de gente esperando para ser atendido”, observa.
Tempo garantido para lazer e diversão
O dinheiro que ganha com a venda de lanches é reservado para os passeios do casal. Todos os anos, eles vão para Guaíra, na divisa com o Paraguai e Mato Grosso do Sul, a cerca de 1000 km de Joinville.”É porque eu só gosto das bebidas e dos perfumes de lá”, conta Ide às gargalhadas. Prefere Guaíra a Foz do Iguaçu porque é mais tranquilo e tem estacionamento nos shoppings.”A gente se hospeda no hotel Papagaio, passeia, descansa e se diverte”, comenta.No final de 2019, o casal quer conhecer Bonito (MT). Gosto de viajar de carro, ir parando, vendo os lugares, “eu e o meu marido somos muito parceiros para este tipo de passeio”. No verão, costumam ir à praia e gostam de acampar. O Caminho Ecológico Parque das Águas, no bairro Vila Nova, é um dos locais prediletos na região. “Ali sempre ficamos uns 10 dias”.
Para driblar o calor e os mosquitos no verão joinvilense, muito repelente e o aparelho portátil de ar condicionado. Levam até freezer, porque o camping fornece energia elétrica. “Também nos informamos sempre se as condições dos banheiros e chuveiros são adequados”. Por enquanto, o casal consegue, no máximo, 20 dias de férias ao ano, mas, quando o marido se aposentar, um novo sonho deverá se realizar: comprar um moto home. Laudenir trabalha na mesma empresa há 28 anos e, segundo Ide, afastou-se apenas uma vez com atestado médico.
O salário de Laudenir é suficiente para pagar todas as despesas do casal, mas, sem a renda do trabalho de Ide faltariam recursos para os prazeres da vida. “Vou me frustar muito se eu quiser passear e não tiver dinheiro”, diz ela. E assim, pensando em trabalho, no futuro, em usufruir a vida e colocando a doença em último plano Ide encontra disposição para madrugar todos os dias. Ela também paga as prestações do carro que usa para vender os lanches.
GPS: um parceiro indispensável
Sobre a doença, por insistência minha, ela conta como tudo começou. “Há quatro anos eu senti uma dormência na língua, mas como eu estava viajando não fui imediatamente ao médico. Quando cheguei em Joinville, senti repuxar o olho e meu marido me levou à Unimed. O médico explicou que os sintomas eram comuns a várias doenças: paralisia facial, AVC, esclerose lateral ou tumor no cérebro. Depois de vários exames, a esclerose se confirmou.
Com a mesma tranquilidade com que fala do seu trabalho, ela descreve os efeitos da doença no seu organismo e como os controla. “Perdi 20% de tudo, da visão à sensibilidade da mão direita, que foi o lado afetado. Se eu queimar a mão, vejo que formou uma bolha mas não sinto dor”, exemplifica. “Não tenho sequelas aparentes, mas, às vezes, esqueço das coisas”.
Por conta da doença, o GPS passou a ser indispensável no carro. Já aconteceu de ficar nervosa ou levar um susto e não saber voltar para casa. “Eu sei onde estou, mas não lembro o caminho que devo fazer”, resume. Certa vez, ela foi ao bairro Jardim Paraíso, onde costuma circular tranquilamente, e teve que chamar o marido para ir buscá-la. “Parei em uma farmácia, dei o número do telefone para uma pessoa e pedi que passassem o endereço de onde eu estava. É como se fosse um apagão”, compara. Mas esses lapsos de memória só ocorrem em situações de grande estresse. No episódio do Jardim Paraíso, por exemplo, ela havia recebido a notícia do acidente de carro que o irmão sofrera com toda a família. Com a medicação que toma a cada 6 meses, Ide não sente a doença evoluir. Quando ela sai de casa às 5h da manhã o marido ainda fica dormindo, porque o seu trabalho começa só às 7h30. Ele não queria que ela trabalhasse com lanches, mas o médico ajudou a convencê-lo, de que seria melhor de que ela se mantivesse ocupada. Preocupado com o bem estar da mulher, nos dias de frio e chuva, Laudenir comprou uma roupa de motoqueiro para que ela se protegesse. “Ele fala que se eu quero trabalhar no inverno, tenho que usar essa roupa”. Pergunto se ela usa e a resposta é uma expressão bem catarinense: “Capaaaazzzz, está ali dentro do carro”.Para tudo, Ide tem solução. Nos dias chuvosos tira do carro um balde de cimento seco e um furo no meio e o faz de suporte para um guarda sol e assim se proteger da chuva. “A clientela não deixa de comer em dia de chuva. Tenho pena de não vir, porque muitas vezes as pessoas não trazem lanche já contando que vou estar aqui. Daí vão comprar aonde”? Seus clientes já sabem: ela só não trabalha nas segundas feiras.
Essa conversa foi interrompida várias vezes pelos fregueses. Homens, mulheres fazem fila esperando a vez. Entre fazer o pedido e pagar, todos trocam rápidas palavras, falam amenidades, onde trabalham, onde moram, sobre comer e engordar. “Ate pão sem manteiga tem quem queira, tudo o que ela vende é bom. Até o que a gente não gosta muito, é bom”, diz uma das consumidoras sorrindo. E assim, Ide vai fazendo de seu trabalho um meio de garantir recursos para o melhor dos investimentos: viver a vida. |
Porta-malas aberto com a garrafa de café, jarra de sucos e os depósitos de lanches |
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Idércia, blusa bege e calça jenas sob o guarda sol de cor verde, atende o cliente Matheus Valenza com blusa preta e crachá |
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Eu, de roupa de academia, calça preta e jaqueta cinza, e, Idércia marcando o registro para o blog SuperLinda |
*Editado por Fernanda de Lourdes Pereira
Texto publicado na Revi Digital da Faculdade de Jornalismo Ielusc.