Como uma atleta chega a ser campeã mundial de patinação se não tiver uma supermãe? A resposta de Fernanda Gomes Pereira Giraldi a essa pergunta é precisa: “Não chega”. Mãe de Gabriella Pereira Giraldi, primeira brasileira a obter o título de campeã mundial de patinação artística, Fernanda começou a se envolver com os patins na década de 1990, quando estudava e treinava no Colégio Bom Jesus. Na época, com apenas 11 anos, ela queria muito aprender a andar de costas igual às meninas que via treinando na pista. |
O pai, embora não enxergasse futuro na atividade, acabou cedendo diante dos insistentes pedidos da menina. O que ele não imaginava, nem mesmo Fernanda, é até onde essa brincadeira de criança chegaria.”Quando aprendi a andar de costas, quis aprender a andar de costas cruzado”, acrescenta se referindo a outro elemento da patinação.
Com a prática e os treinos, veio também a vontade de participar das competições. Entretanto, por mais que o pai de Fernanda quisesse atender os desejos da garota, os tempos eram difíceis e faltavam recursos para pagar mensalidades e gastos com o esporte. Inconformada, Fernanda falou com a professora Junelara Casagrande, explicou que não podia mais frequentar as aulas e, portanto, não poderia competir. “Como é que a gente pode fazer?”, indagou a menina. Junelara então sugeriu que Fernanda a ajudasse, dando aulas para as crianças menores. “Dessa forma eu pagava e fazia meus treinamentos”, conta.
E como a vida é uma escritora caprichosa de seus roteiros, começava ali, de forma totalmente despretensiosa, a carreira de treinadora na qual se transformou Fernanda. Como patinadora, ela até chegou a competir em nível nacional, mas reconhece que nunca foi um destaque: “Patinava bem, não passava vergonha, mas nunca fui uma graaaaande patinadora”, explica. |
Fernanda quando jovem vestida com collant em tons de laranja e usando patins |
Disposta a driblar qualquer obstáculo, a jovem Fernanda pedia ajuda para as mães das colegas lhe ensinarem a bordar o collant. Ela desenhava os modelos e, depois de aprovado pela professora, confeccionava. “Meu pai me levava na costureira e depois a Elzinete, mãe de uma amiga minha, me ajudava a bordar”, recorda. Até essa particularidade faz de Fernanda uma mãe campeã. A habilidade que desenvolveu para criar e bordar os collants hoje é mais um apoio à filha Gabriella. No Campeonato Mundial, a jovem usou a roupa bordada com carinho pela mãe. “A diferença é que, antigamente, eu bordava com canutilho, miçangas, lantejoulas, hoje fazemos com cristais Swarovski“, afirma.
Entre a advocacia e os patins
E assim, de forma amadora e do jeito que dava, Fernanda levou seus treinos enquanto conseguiu. Tudo era muito difícil, não havia quadra para treinar nem incentivo para o esporte. A necessidade de abraçar uma profissão formal levou Fernanda a estudar Direito. Durante algum tempo ainda conseguiu conciliar os estudos com os treinos, mas, sem perspectiva de um futuro promissor, precisou deixar de lado os patins para se dedicar à faculdade e aos estágios. “No ano em que me formei, a patinação acabou completamente em Joinville”, lembra Fernanda com ar de desânimo, como se falar do assunto a fizesse reviver aqueles dias.
Nesse período, Fernanda casou com André Luis Becker Giraldi e teve duas filhas: Gabriella, hoje com 18 anos, e Manuella (12), que também já é patinadora e campeã Sul-Americana de quarteto e grupo de show. “Quando a Gabi fez 5 anos, dei-lhe de presente um par de patins. Ela ficava patinando no corredor da casa onde morávamos”, conta. Por gosto, instinto e com a experiência adquirida nas aulas que deu para crianças, Fernanda ia dando instruções para a filha: “Faz isso… faz aquilo…”
O presente, segundo Fernanda, foi dado como um brinquedo qualquer e não como uma projeção de futuro, mas confessa que qualidade dos patins que deu à filha era bem superior ao que ela própria recebeu do pai quando iniciou os treinos.
Observando o gosto que Gabriella passou a demonstrar pelo esporte, Fernanda foi ao Colégio Oficina, onde a menina estudava, e perguntou se era possível alugar a quadra para ensinar a filha a patinar. “A diretora Marcia Poletti propôs, já que conhecia minha história com a patinação, que eu também ensinasse a filha dela de 9 anos.”
Nasce uma treinadora
A volta de Fernanda às atividades da patinação também marcou o início da trajetória da campeã Gabriella. “Comecei a dar aula e logo foram aparecendo outras meninas querendo aprender. No primeiro mês eu já tinha 20 alunas”, observa. Nessa época, então como treinadora de patinação, passou a montar coreografias para apresentações com as crianças. Isso foi em 2007. Ao mesmo tempo que advogava o dia inteiro no escritório do pai.
Com o incentivo do marido, Fernanda conseguiu, em 2009, um espaço para dar aulas na academia Casebre. “Era um local mais central e, com o aumento na quantidade de alunos, fui obrigada a diminuir a atividade na advocacia”. Não foi uma escolha fácil, afinal Fernanda já amava também o Direito. “Eu não tinha mais condições de sustentar as duas atividades, era cansativo, desgastante e, nessa época, eu já tinha a Manuella que era pequena”, conta.
Tudo parecia apontar para o novo período que se iniciava. “Até meu pai, que sempre quis que eu parasse de patinar, sentou comigo e disse que estava na hora de fazer a opção”.
As experiências seguintes mostrariam que Direito e Patinação voltariam a se encontrar. Em 2012, quando Fernanda assumiu a presidência da Federação Catarinense de Patinação, pode aproveitar o conhecimento acadêmico para regularizar contratos e a parte jurídica da Federação. Novamente, como de costume, ela contou com a ajuda de seu pai.
Amor de mãe a serviço da patinação catarinense
Quem vê Fernanda Gomes Pereira Giraldi administrando seu próprio espaço exclusivo para patinação – a Equilibri – e orgulhosa das conquistas das filhas Gabriella (campeã mundial de patinação artística) e Manuella (campeã sul-americana de quarteto e grupo de show) não imagina os obstáculos que teve de enfrentar ao longo da vida para manter vivo o amor pelo esporte. Encontrar locais para a prática e ensino da patinação não é tarefa fácil em um país onde a prioridade costuma ser o futebol.
Se na infância ela teve o apoio do pai, como treinadora o incentivo veio do marido André. Bailarino de jazz, André integrou o Grupo Raça, de Roseli Rodrigues, em São Paulo, mas também precisou largar essa atividade para ter um emprego convencional. Atualmente, é ele quem cuida de toda a parte administrativa e comercial da escola. O ambiente é aberto para atividades multidisciplinares esportivas e artísticas, mas o foco principal é a patinação.
Também coube a André ficar com a filha menor em casa, ainda pequenina, para que Fernanda acompanhasse Gabriella em cursos e competições que surgiam. “Às vezes passávamos até 15 dias fora e ele só dizia: ‘vai sim…vai que eu seguro a onda’”.
O crescimento de Fernanda como técnica também se deu pela necessidade de auxiliar a filha Gabriella no esporte, diante do desempenho obtido. Há uma grande diferença entre a Fernanda patinadora, a Fernanda mãe e a Fernanda técnica, embora uma tenha evoluído com a outra. “Quando eu parei de patinar, eu já dava aulas, mas as dificuldades para a prática da profissão mais uma vez interferiram no meu crescimento profissional como treinadora, por isso me dediquei ao Direito na época”, lembra. “A advocacia sim era considerada uma profissão”, desabafa.
Diferente da mãe, a campeã Gabi teve todas as oportunidades para se dedicar ao esporte, fazer cursos e participar de competições. “Na minha época não tínhamos nem federação nem reconhecimento da importância da patinação”, conta Fernanda.
A paixão pelo esporte predileto não se esvaiu com o tempo. “Quando coloco os patins e saio andando por esta sala, o mundo para. Coloco uma música e eu não quero pensar em outra coisa”, confessa. “O mesmo acontece com a Gabi”, declara. |
Fernanda, André e Gabriela de collant vermelho, ainda criança, na primeira premiação |
Assim que percebeu o interesse de Gabriella pelos patins, Fernanda e o marido não pouparam esforços para incentivar a menina. “Não se trata de compensar uma frustração por eu não ter conseguido chegar onde a Gabi chegou, mas sim de proporcionar a ela oportunidades”, justifica.
Renunciar é preciso
Assim como a mãe, Gabriella nunca reclamava de treinar aos sábados. Trocava festas de aniversários por treinos e competições, incluindo a troca de presentes pelos gastos decorrentes de cursos ou equipamentos. São renúncias que ela faz desde o início da sua trajetória. Sempre abdicou de festas da família, até mesmo do aniversário do pai – que é no início de janeiro – período em que se concentra a maior quantidade de treinos. “Isso acontece desde que ela tinha mais ou menos uns 10 anos”, confirma Fernanda.
Esses sacrifícios em nome do esporte acabaram afetando toda a família. O casal que está junto há 23 anos, entre namoro e casamento, fez a primeira viagem junto, este ano, para Barcelona e, ainda assim, o motivo foi a disputa do Mundial. Definitivamente, a patinação é o fator motivacional que movimenta toda a família.
Há um ano, quando a jovem Gabriella classificou-se para o Campeonato Mundial, André colocou como um propósito ver a filha se tornar campeã. Na França, no ano passado, e em tantas outras competições sempre era a mãe quem viajava com Gabriella, até por questões de economia. No Brasil, os cursos concentram-se na cidade de Santos-SP. “É o lugar de referência da patinação no Brasil, onde está Kadu Paiva, treinador da seleção brasileira”, informa Fernanda. Kadu tornou-se amigo pessoal da família.
Como a patinação não é um esporte olímpico, não há patrocinador. Todos os treinos de Gabi no exterior – condição indispensável para uma atleta se tornar campeã – foram custeados pela família, o que também inclui avós paternos e maternos, tios, padrinhos, amigos. Todos se juntavam e contribuíam com dinheiro, cada um dentro das suas possibilidades, para pagar as passagens, a estadia e os treinos.
Não existe na lista de prioridades da vida de Fernanda nada que ela possa lamentar não ter feito por priorizar a carreira de Gabriella. “Tudo valeu a pena, mesmo que ela não tivesse alcançado esse título”, garante.
Trajetória de sucesso
Em 2009, Gabriella já era campeã catarinense e desde 2012 integra a seleção brasileira. Mesmo sendo a primeira técnica da filha, Fernanda reconhece que outras treinadoras estão a sua frente e destaca o trabalho de Gleice Cani. “É a técnica do coração da Gabi e atualmente sua psicóloga esportiva.” |
Gabriela com collant em tons de azul no dia da competição que a sagrou Campeã Mundial de patinação de 2019. |
Embora amigos técnicos e patinadores sempre tivessem previsto que Gabriella seria campeã, Fernanda enxergava tal destaque como um sonho distante da realidade da família. Até mesmo às vésperas do Mundial, quando André dizia entusiasmado que ia a Barcelona ver a filha se tornar campeã, Fernanda preferia a cautela e pedia para o marido controlar a empolgação. “Na verdade, eu usava essa negativa como uma forma de me proteger e proteger minha filha do medo de uma decepção”, reconhece.
Quando Gabriella precisou passar um tempo em Portugal para se preparar para o mundial, o coração de mãe de Fernanda ficou apertado. Sabia da importância desses treinos, mas, ao mesmo tempo, temia o longo tempo de permanência da filha no exterior. “Já o André não teve a menor dúvida em dizer que nós tínhamos que permitir e que ela não podia perder essa oportunidade”, conta a mãe. Ainda assim, Fernanda chorou muito durante a ausência de Gabi.
Certamente não há a menor dúvida de que a mudança para Portugal e o trabalho feito com os treinadores Fernanda Ferreira e Hugo Chapouto foram determinantes para a conquista do título. Chapouto já tinha feito outros campeões mundiais, mas nunca uma mulher”, afirma Fernanda. Da mesma forma, foi importante a contribuição da treinadora Fernanda Ferreira, brasileira que reside em Portugal e trabalha com o técnico português há dois anos.
Itália, Portugal e Espanha têm tradição como berços de campeões de patinação. Porém, com a mudança nos critérios de avaliação do sistema “rollart”, a competição ficou mais justa e transparente. Além da parte técnica, os avaliadores levam em consideração os componentes artísticos. “O atleta é avaliado pelo que executou e não mais de forma comparativa, como no sistema anterior”, explica Fernanda.
Além de ser a primeira brasileira a ganhar o título de Campeã Mundial, Gabriella também foi a primeira a ganhar com esse novo sistema de avaliação. O Brasil já vem adotando o “rollart” há aproximadamente três anos.
Como mãe e técnica, Fernanda aponta e reconhece todas as dificuldades para uma atleta de patinação. “É um esporte de elite, os equipamentos, as rodinhas dos patins, que são trocadas a cada três meses, assim como as roupas, é tudo muito caro”. Quando os pais começam a se deparar com esses custos, além das aulas, despesas de estadia e de viagens para cursos e competições, muitos desistem.
Fernanda tem 20 atletas que já participam de competições e vê bom potencial em outras crianças. Em relação às filhas, o trabalho continua o mesmo, repleto de atenção e empenho. Sabe que o caminho de Gabriella está só começando e que Manuella deverá trilhar os passos da irmã. Hoje Fernanda se sente mais segura, tem mais conhecimento acumulado. “Nessa caminhada, tudo valeu, inclusive as experiências negativas. Com os erros eu também aprendi”, afirma.
Os projetos de futuro permanecem. Gabriella, agora com 18 anos, passou, para a categoria “sênior” na qual o nível de exigência na execução é maior, requer ainda mais perfeição. Nessa categoria, os atletas entram com 18 anos, mas não há limite para parar. “Então ela vai começar a competir com atletas experientes que já estão ali há cerca de 10 anos. Este será seu grande desafio”, prevê a mãe.
Após a conquista do Mundial, mãe e filha continuam os treinamentos juntas. Elas gravam vídeos, Fernanda aponta os problemas e a campeã absorve o que a mãe diz. Da mesma forma, os técnicos de Portugal orientam a distância, observando os vídeos. Quanto à Manuella, a intenção é dar-lhe todas as oportunidades possíveis. Reconhece que a filha menor só agora está realmente despertando para os treinos. “Mas, justamente por ter pouco tempo de treinamento e já ter se tornado campeã sul-americana, é sinal de que tem talento.” |
Fernanda, André e Manuella com collant em tons pink quando se tornou Campeã Sul Americana. |
Desde que está à frente da Federação, Fernanda promove cursos e, com isso, sente-se criando chances não só para as suas filhas, mas para todas as crianças que se interessam pelo esporte. Quando ela entrou para a Federação existiam 8 clubes filiados, hoje são 26 e há aproximadamente 60 escolas em Santa Catarina. Lá se vão 13 anos de luta pelo esporte e agora, com uma campeã mundial em casa, Fernanda se sente ainda mais motivada a tornar a patinação um sonho possível de ser realizado.
Texto publicado originalmente na Revi Digital – Revista da Faculdade de Jornalismo Ielusc
http://revidigital.com.br/campea-mundial-de-patinacao-herda-da-mae-a-paixao-pelo-esporte/
http://revidigital.com.br/amor-de-mae-a-servico-da-patinacao-catarinense/